sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Tesouro aramaico destruído na II Guerra Mundial reconstituído em Berlim

Um conjunto escultórico aramaico destruído num bombardeamento na II Guerra Mundial foi reconstituído e ficará aberto ao público a partir de sexta-feira no Museu Pergamon, em Berlim.

 

 

O tesouro arqueológico estava desfeito em 27.000 fragmentos, guardados e esquecidos numa cave daquele museu berlinense desde 1944, e foi objeto de uma operação de reconstrução que demorou nove anos, segundo a agência France Presse.

A exposição, intitulada "Os Deuses Salvos de Tell Halaf" mostra um conjunto de cerca de 60 estátuas e baixos-relevos de diferentes dimensões.

O sítio arqueológico de Tell Halaf, que hoje pertence à Síria, na fronteira com a Turquia, foi encontrado em 1899 pelo barão Max von Oppenheim, um diplomata que residia então no Cairo.

O barão conseguiu permissão das autoridades otomanas para fazer escavações, num lento processo interrompido pela I Guerra Mundial, e só conseguiu iniciá-las em 1927. O principal achado foi o palácio do príncipe Kapara, que incluía um conjunto de cinco metros de altura com três deuses sobre animais e uma figura feminina sentada.

Os achados foram divididos entre o museu de Aleppo e o próprio Oppenheim, que levou a sua parte para Berlim e a guardou numa fundição desativada, transformando-a no Museu Tell Halaf.

Segundo o The Art Newspaper, a escritora Agatha Christie e o marido, o arqueólogo Max Mallowan, estiveram neste museu, numa visita de cinco horas guiada pelo próprio Oppenheim.

Em novembro de 1943, uma bomba lançada pela aviação britânica atingiu em cheio o museu. O incêndio que se seguiu atingiu temperaturas elevadíssimas -- 1.000 graus centígrados -- e consumiu tudo o que era em madeira, calcário ou gesso. O basalto do conjunto de Tell Halaf resistiu ao fogo mas estilhaçou-se ao contacto com a água usada para apagar o incêndio.

Em 1944, os restos foram cuidadosamente recolhidos por iniciativa de Walter Andrae, diretor do departamento de Antiguidades do Médio Oriente do museu de Berlim, que conseguiu levá-los em nove camiões para a cave do museu de Pergamon.

Foi nessa cave que os 27.000 fragmentos ficaram esquecidos durante toda a história da República Democrática Alemã (RDA): o museu ficava em Berlim Leste e a fundação Oppenheim na Alemanha ocidental.

Só depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, os responsáveis do Museu Pergamon começaram a pôr de pé um puzzle gigante em 3D, num trabalho minucioso que demorou nove anos.

A exposição fica patente até 14 de agosto no Museu Pergamon, em cuja coleção permanente o conjunto ficará depois integrado.

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
Fonte: Lusa/fim

 

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Awzar Raze – Comentários de Bar Hebreus sobre a Bíblia

O texto conhecido como Awzar Raze (ܐܘܨܪ ܐܪܙܐ), ou O Armazém dos Mistérios (também Depósito de Mistérios, latim: Horreum Mysteriorum), escrito por Bar Hebreus em 1277-78 A.D., é composto por comentários sobre toda a Biblia, Antigo e Novo Testamento. Usando como base o texto da Peshitta, o autor compara as passagens bíblicas com outras versões da bíblia aramaica, comentando sobre as diferenças gramaticais entre cada uma. Bar Hebreus também traz  comentários exegéticos e doutrinais, compilados de autores e Pais da Igreja anteriores a ele,  junto com seus próprios comentários.
O texto nunca foi publicado de forma completa. O que temos são publicações de  porções do comentário por diferentes autores, principalmente por pesquisadores como parte de teses de doutorado.
Mas, felizmente, o Centro Para a Preservação de Textos Religiosos Antigos, da Universidade de Brigham (CPART/BYU – Center for the Preservation of Ancient Religious Texts/Brigham Young University) disponibilizou em sua biblioteca digital um manuscrito completo que contêm este trabalho. A biblioteca digital tem duas seções principais: uma é chamada Brown Collection, e que inclui manuscritos microfilmados que pertencem ao monastério de São Marcos, em Jerusalem. O manuscrito que contêm os comentários de Bar Hebreus está numerado como SMC 3-4. A outra, Syriac Books, possui publicações,  incluindo um livro de W. E. Carr com a porção dos comentários de Bar Hebreus sobre os Evangelhos.
Apresento abaixo a tradução do comentário sobre Marcos 1:1-6, retirado do manuscrito SMC 3-4, referido acima. É importante, antes, observarmos o seguinte: a versão da bíblia que Bar Hebreus denomina Grego, é (provavelmente) a tradução que Philoxeno de Mabug fez da bíblia grega para o aramaico no início do século VI, e portanto é bastante posterior à Peshitta. O autor procura apresentar as diferenças gramaticais entre a tradução de Philoxeno e a Peshita, principalmente no que diz respeito à acentuação e pronúncia das palavras no aramaico.  Para uma melhor compreensão e fluidez do texto traduzido, coloquei entre colchetes [ ] palavras que não constam no texto aramaico, mas são inferidas por mim. Entre parênteses ( ) os comentários referentes à gramática.
Este texto fará parte de um projeto que comecei a desenvolver já há algum tempo, e que pretendo publicar em meu outro blog, Textos Aramaicos (blog dedicado exclusivamente aos textos que estou traduzindo para a língua portuguesa). Este projeto se chama Comentários Bíblicos na Tradição Aramaica, e que será uma compilação de comentários em aramaico sobre a bíblia. Num primeiro momento, estou coletando os comentários sobre o Evangelho de Marcos.
Aqui, não posso deixar de agradecer ao diretor do CPART/BYU, que gentilmente permitiu-me utilizar do material oferecido pelo site para este projeto, material este que é de fundamental importância para todos os que desejam estudar sobre a tradição e cultura aramaica em qualquer de seus ramos.
Vou apresentar primeiro o versículo bíblico de acordo com a Peshitta, depois o comentário de Bar Hebreus.

Marcos 1:1

Peshitta:
ܪܫܐ ܕܐܘܢܓܠܝܘܢ ܕܝܫܘܥ ܡܫܝܚܐ ܒܪܗ ܕܐܠܗܐ
O início do Evangelho de Yeshua* o Messias, o filho de Deus.
Bar Hebreus
ܪܫܐ ܕܐܘܢܓܠܝܘܢ ܕܝܫܘܥ ܡܫܝܚܐ ܗ ܕܥܡܕܐ ܐܝܬܘܗܝ ܪܫܐ ܕܐܘܢܓܠܝܘܢ ܐܟܡܐ ܕܡܪܩܘܤ ܛܟܤ ܝܕܝܥܐ ܡܢ ܗܝ ܕܡܢ ܩܕܡ ܕܢܥܡܕ ܡܪܢ ܠܐ ܐܟܪܙ ܐܦܠܐ ܤܒܪ܂ ܡܢ ܒܬܪ ܕܥܡܕ ܘܐܬܢܤܝ ܫܪܝ ܠܡܐܡܪ܂ ܬܘܒ ܩܪܒܬ ܠܗ ܡܠܟܘܬܐ ܕܫܡܝܐ܂ ܘܩܕ ܒܤܝܠܝܘܤ ܐܡܪ܂ ܕܗܘ ܡܪܩܘܤ ܠܘܩܕܡ ܐܬܚܫܚ ܒܫܡܐ ܗܢܐ ܕܐܘܢܓܠܝܘܢ ܘܝܕܝܥܐ ܗܕܐ ܡܢ ܗܝ ܕܬܠܬܐ ܐܘܢܓܠܤ[ܬܐ] ܐܚܪܢܐ ܠܐ ܐܬܕܒܪܘܗܝ܂
O início do Evangelho de Yeshua o Messias. Obs.: que o batismo é o início do Evangelho de acordo com o arranjo de Marcos, é sabido disso: que antes de nosso Senhor ser batizado, ele não pregou nem anunciou [algo]. Mas após o batismo, e ser tentado, ele começou a dizer: arrepende-te, o reino dos céus aproxima-se. E São Basílios disse que este Marcos usou primeiro este termo, do Evangelho, e sabemos este [fato] por isto: os outros três evangelistas não fizeram uso dele**.

Marcos 1:2

Peshitta
ܐܝܟ ܕܟܬܝܒ ܒܐܫܥܝܐ ܢܒܝܐ ܕܗܐ ܡܫܕܪ ܐܢܐ ܡܠܐܟܝ ܩܕܡ ܦܪܨܘܦܟ ܕܢܬܩܢ ܐܘܪܚܟ
Como está escrito em Eshaia o profeta: Eis que estou enviando o meu mensageiro ante a tua face, o qual irá preparar o teu caminho.
Bar Hebreus
ܐܝܟ ܕܟܬܝܒ ܒܐܫܥܝܐ ܢܒܝܐ܂ ܐܝܟ ܕܩܕܡ ܟܬܝܒ ܒܢܒܝܐ ܗ ܒܐܫܥܝܐ ܘܒܡܠܐܟܝ܂ ܒܐܫܥܝܐ ܡܢ ܩܠܐ ܕܩܪܐ ܒܡܕܒܪܐ܂ ܒܡܠܐܟܝ ܕܝܢ ܗܐ ܐܢܐ ܡܫܕܪ ܐܢܐ ܡܠܐܟܝ ܩܕܡ ܦܪܨܘܦܟ ܕܢܬܩܢ ܒܦܬܚ ܢܘܢ ܐܘܪܚܟ܂
Como está escrito em Eshaia o Profeta. Assim primeiro foi escrito nos Profetas. Obs.: em Eshaia e em Malaqui. Em Eshaia: a voz que clama no deserto. Então em Malaqui: eu estou enviando o meu mensageiro ante a tua face, o qual irá preparar (nun com petokho) o teu caminho.

Marcos 1:3

Peshitta
ܩܠܐ ܕܩܪܐ ܒܡܕܒܪܐ ܛܝܒܘ ܐܘܪܚܗ ܕܡܪܝܐ ܘܐܫܘܘ ܫܒܝܠܘܗܝ
A voz que clama no deserto: Preparem o caminho do SENHOR, e endireitem suas estradas.
Bar Hebreus
ܩܠܐ ܕܩܪܐ ܒܡܕܒܪܐ ܗ ܩܠܐ ܐܬܩܪܝ ܝܘܚܢܢ܂ ܒܗܝ ܕܥܠ ܡܠܬܐ ܡܫܝܚܐ ܐܠܗܐ ܒܕܩ ܡܢ ܓܝܪ ܩܠܐ ܡܬܒܕܩܐ ܡܠܬܐ ܕܟܤܝܐ ܒܢܦܫܐ܂ ܘܐܫܘ ܒܦܬܚ ܘܐܘ ܫܒܝܠܘܗܝ ܝܘܢܝܐ ܐܪܨܐ ܥܒܕܘ ܫܒܝܠܐ ܕܐܠܗܐ ܕܠܢ܂
A voz que clama no deserto. Obs.: Yukhanan é chamado a Voz, pois ele declarou a Palavra [do] Messias [e] Deus. Pois pela voz torna-se conhecida a palavra que está escondida na alma. E endireitem (wau com petokho) suas estradas. Grego: façam retas as estradas do nosso Deus.

Marcos 1:5 (Bar hebreus não comenta todos os versos bíblicos)

Peshitta
ܘܢܦܩܐ ܗܘܬ ܠܘܬܗ ܟܠܗ ܟܘܪ ܕܝܗܘܕ ܘܟܠܗܘܢ ܒܢܝ ܐܘܪܫܠܡ ܘܡܥܡܕ ܗܘܐ ܠܗܘܢ ܒܝܘܪܕܢܢ ܢܗܪܐ ܟܕ ܡܘܕܝܢ ܒܚܛܗܝܗܘܢ
E saía em direção a ele toda a região de Yehuda e todos os filhos de Urishlim, e ele batizava-os no Yordanan o rio, enquanto  confessavam em seus pecados.
Bar Hebreus
ܘܢܦܩܐ ܗܘܬ ܠܘܬܗ ܟܠܗ ܟܘܪ ܒܥܨܨ ܟܦ ܡܩܫܝܬܐ ܝܘܢܝܐ ܟܘܪܐ ܒܙܟܦ ܟܦ ܡܪܟܟܬܐ ܘܦܬܚ ܪܫ ܘܡܥܡܕ ܗܘܐ ܠܗܘܢ ܒܝܘܪܕܢܢ ܢܗܪܐ ܟܕ ܡܘܕܝܢ ܒܚܛܗܝܗܘܢ ܗ ܡܢ ܗܪܟܐ ܝܕܝܥܐ ܕܐܠܨܝܬܐ ܐܝܬܝܗ ܡܘܕܝܢܘܬܐ ܠܡܗܝܡ
E saía em direção a ele toda a região (caph com esoso qushaia). Grego: a região (caph com zeqofo rukakha, rish com petokho). E ele batizava-os no Yordanan o rio, enquanto  confessavam em seus pecados. Obs.: com isso nós sabemos que é urgente a confissão para o fiel.

Marcos 1:6

Peshitta
ܗܘ ܕܝܢ ܝܘܚܢܢ ܠܒܝܫ ܗܘܐ ܠܒܘܫܐ ܕܤܥܪܐ ܕܓܡܠܐ ܘܐܤܝܪ ܗܘܐ ܥܪܩܬܐ ܕܡܫܟܐ ܒܚܨܘܗܝ ܘܡܐܟܘܠܬܗ ܐܝܬܝܗ ܗܘܬ ܩܡܨܐ ܘܕܒܫܐ ܕܒܪܐ
Mas ele, Yukhanan, estava vestido com uma roupa de pêlo de camelos e um cinto de couro cingido em sua cintura, e sua comida era ‘qamtsa’*** e mel do campo.
Bar Hebreus
ܕܤܥܪܐ ܕܓܡܠܐ ܒܪܒܨ ܠܡܕ ܝܘܢܝܐ ܡܙܩܦ ܠܡܕ܂ ܘܐܤܝܪ ܗܘܐ ܥܪܩܬܐ ܒܪܒܨ ܥܐ ܘܦܬܚ ܪܫ ܕܡܫܟܐ ܒܚܨܘܗܝ ܝܘܢܝܐ ܥܠ ܟܤܤܬܗ ܒܙܩܦ ܤ ܘܩܘܫܝ ܬܘ܂ ܩܡܨܐ ܘܕܒܫܐ ܕܒܪܐ ܒܦܬܚ ܒܝܬ܂
De pêlo de camelos (lâmad com reboso). Grego: lâmad com zeqofo. E um cinto cingido (ee com reboso e rish com petokho). De couro em sua cintura. Grego: sobre seus lombos (com zeqofo em semkat e qushaia no tau). Qamtsa e mel do campo (com petokho no bit).
Notas sobre a tradução:
* Coloquei os nomes de pessoas e lugares como são pronunciados em aramaico, de acordo com a Peshitta Interlinear de Paul Younan. Mas não tenho certeza se isto ficará adequado para o projeto inteiro, e provavelmente, no futuro, vou utilizar os nomes em português.
** Bar Hebreus, citando São Basílio, se refere aqui à palavra ‘Ewangelion’, de origem grega, e que é usada apenas em Marcos 1:1. O restante do Evangelho de  Marcos, e os outros três evangelistas, usam a palavra sbarta, de origem aramaica, e que significa mensagem, novas, novidades, notícia, e também é um sinônimo de Evangelho, etc.
*** ‘qamtsa’ pode ser tanto gafanhoto como pastinaca (cheruvia), que é um tipo de raíz. Não está claro para mim a qual o texto se refere.

Continua aqui.